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Minha proximidade com Margarida tanto me encantava quanto o aborrecia. Mas eu me sentia singularmente satisfeita quando, descalça como ela, lavando pisos e paredes, eu me deleitava com as lendas de sua terra, com as incríveis proezas de seus antepassados, com a coragem desmedida de sua gente que ela sempre me relatava com um brilho de orgulho nos olhos e uma entonação de saudade em sua voz embargada. Durante nossas aborrecidas recepções, dava sempre um jeito de escapulir dos salões iluminados - onde só se falavam a respeito da expansão desenfreada das próprias fortunas ou sobre as últimas novidades de uma estúpida guerra - para sentar-me comodamente no chão do quarto daquela simples criatura e aconchegar-me no clima de felicidade irradiado pelo relato saudosista de sua infância.
Junto de seu povo, Margarida certamente teria sido uma rainha! Sequer as imundícies da senzala, a degradação do cativeiro ou o extermínio familiar por que passou na escravatura conseguiram fazer desaparecer de seu perfil aquele quê de espírito altivo, aquele seu traço marcante de dignidade humana (que tanto me encantavam!). Seus contos fantásticos - misto de uma imaginação audaciosa com uma rica herança verbal adquirida - relatados naquele seu peculiar linguajar rústico e primitivo evidenciavam para mim o primeiro degrau do verdadeiro estado de pureza humana, absolutamente distante de qualquer intenção maligna de explorar seu semelhante. Bem ao contrário, sua figura representava - gritantemente - uma indiscutível personificação da total subserviência e máxima opressão a que se pode submeter um indivíduo. E ainda assim ela se julgava feliz!...
Nos seus 78 anos de lealdade aos Aleixo Couto y Hernandes jamais recebeu qualquer atenção que não obedecesse a assuntos de interesse estritamente doméstico; jamais ocupou o pensamento de qualquer membro de sua família que não fosse para aceitar, aliviado, a natural dádiva de seus perfeitíssimos serviços; jamais apresentou - em sua quase centenária vida - a menor exigência de maiores direitos para si mesma ou a mais leve contestação pela discutida sorte de ter nascido unicamente para servir, com tanta docilidade, a duas gerações de uma família.
Não chegava propriamente a ser tratada como uma desvalorizada peça de museu; mas - considerada que era como mais um dos variados elementos dessa casa que foram sendo naturalmente adquiridos por herança - aceitavam-se suas demonstrações de carinho com a mesma falta de estranheza com que se recebiam - um do outro - os cobiçados imóveis, as pretensiosas insígnias ou as disputadíssimas obras de valor.
Nossa amizade não tardou a ser percebida por todos, tal fato passando a ocupar papel de destaque nas rotineiras discussões familiares, inicialmente como um constrangedor desconforto para, logo em seguida, ser colocado à margem das atenções, em função de minha já conhecida ¨excentricidade¨ responsável por ¨um comportamento atípico, doentio, de mostrar-me solta, alegre e prolixa, apenas, com um louco, uma criada e uma criança¨.
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Trecho do romance Enquanto fritam os bolinhos - Gitahy Medeiros - 1989
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